6.15.2007

Será que o espaço da crítica ainda existe? -- 1

A “crítica” enquanto comentário mais ou menos profissional das obras de arte surge com o aparecimento da figura do artista independente, nos finais do século XVIII e torna-se importante sobretudo no século XIX. Contemporâneo do mercado da arte, ou da arte como produto mercantil, produzido de modo cada vez mais independente da encomenda directa do mecenas ou do estado, o “crítico” instala-se no espaço intermédio entre o artista e o seu público, que vai tornar-se, mais trivialmente, a sua clientela, enquanto guia de compras avisadas e de consumo judicioso.
Mas a noção de crítica perde, ao identificar-se com essa função e com os comprometimentos que a acompanham, o sentido de análise intelectual desinteressada. Dando um grande salto no tempo, podemos constatar como a mecânica dos prémios literários, cujos júris congregam os críticos que publicam as suas análises e opiniões em diversos jornais ou revistas, vai pouco a pouco revelar as ligações de interesses sempre algo obscuras entre os críticos e as editoras: o interesse comercial das grandes casas de edição encontra o seu caminho até ao seio dos júris que, ao atribuir os prémios, abrem a oportunidade para o êxito comercial.

Na verdade, a actividade crítica, entendida como exame da consistência de um discurso, da coerência de uma argumentação, ou das pretensões à objectividade e à verdade de um discurso, encontra um novo terreno onde se exerce de maneira privilegiada: a ciência.
Com efeito, ao referir-se à busca da objectividade, ao aceitar submeter-se à prova da experiência, ao não aceitar em princípio senão argumentos intrínsecos ao processo de recolha de dados e de raciocínio a partir deles, a actividade científica assenta, em princípio, na criação de um espaço de debate estritamente regulado pelas normas internas do conhecimento e da sua confrontação com a realidade.

Mas a aplicabilidade deste esquema epistémico (um sistema de exigências cognitivas) e social (um modo de organização da actividade científica) de produção de conhecimento integrando a crítica como momento fundamental ao domínio das artes é sujeita a dúvidas.
Nestes domínios, enquanto o espaço de debate foi dominado pelo pensamento “moderno”, marcado por uma crença ingénua em certas promessas das novas ciências, a “crítica” podia exercer-se num estilo de pensamento e num tom de discurso que pedia de empréstimo ao positivismo científico a certeza e o critério de verdade quase absoluta.


A paisagem intelectual é hoje bem diferente.
À crença ingénua na certeza, substitui-se pouco a pouco o culto da incerteza; à crença numa verdade absoluta, a crença na absoluta relatividade de todas as crenças.
À ideia “moderna” (termo em si nada unívoco) que a verdade é só uma, tende a substituir-se a de que não há verdade, que todos os discursos por conseguinte se valem. A “opinião” substitui, até nas páginas dos nossos jornais, a análise. Uma análise, por mais séria e fundamentada que seja, será hoje publicada, se o for, na rubrica “opiniões”.

O relativismo estético, que segue por via de consequência o relativismo epistémico, e traz na esteira o relativismo moral, não abandona apenas a certeza e a crença na verdade única e definitiva, mas a própria noção de verdade e compromete tanto a construção de uma Ética, como a construção de um mundo de saber partilhado. Abrimos aqui, decerto, mais uma questão difícil: a do lugar da noção de "verdade" em arte, mas deixá-la em aberto é mais uma indicação de um programa que um abandono...

O “pós-modernismo” não trouxe apenas uma compensação – que era certamente necessária - ao absolutismo positivista, como instaurou um espaço de discurso em que se torna impossível avançar, em comum, para uma verdade cada vez mais aproximada.

Despejou, como se costuma dizer, o bebé com a água do banho.
A tarefa que nos mais diversos domínios da actividade intelectual temos pela frente, é a de reconstruir um espaço crítico, no qual o debate se torne de novo possível, escapando tanto ao extremo relativismo (“a minha opinião vale a sua e todas se valem”), como ao dogmatismo (“eu tenho razão porque sou quem sou, porque sei, ou apenas porque sim”).
Podemos esquematizar a dimensão que se define entre os dois pólos ou limites que são por um lado o relativismo absoluto e por outro o dogmatismo, como uma dimensão linear. Numa zona intermédia, entre os valores extremos dessa dimensão, encontramos o espaço possível de uma crítica.

Como fundamentar a actividade crítica nessa região instável, sempre submetida à força de dois pólos opostos, numa espécie de atractor estranho, entre o eclectismo e o dogmatismo?

Como manter a tensão e articular critérios que, sem serem positivistas, sejam positivos (que se refiram a sistemas de argumentação e de prova em confrontação com a realidade)?
Só é possível, creio, definindo procedimentos legítimos (reconhecidos em comum por uma comunidade de "debatentes") incluindo tipos de argumentos que podem ser recebidos, modos de análise aceites, critérios de avaliação dos objectos, etc. podemos fundamentar uma actividade crítica (em qualquer domínio).
Um pouco à maneira do que sugere N. Luhman quanto à legitimação (da justiça, da política, etc.) pelo procedimento.

6.12.2007

Formas, transformações, inspirações

Do que sabemos do trabalho de alguns grandes compositores (aqueles que abriram vias de criação até aí pouco ou nada exploradas), fica-nos a ideia que a inspiração formal terá desempenhado um papel de primeira importância. O mesmo se pode dizer de outras artes e a literatura fornece exemplos maravilhosos (desde o "périplo" - um "fechado" topológico, com tudo o que o "fecho" da curva - a vida e a viagem de Ulisses - carrega como valor simbólico), ao solenóide de "Finnegans Wake" onde, como se sabe, a última frase do livro tem a sua continuação na primeira. O "Novo romance" desenvolveu igualmente esta veia.
Outros melhor do que eu poderão aqui evocar a importância das formas geométricas e funções numéricas na obra de um Xenakis, por exemplo.
Mas mais que a importância, já sobejamente reconhecida, o que me interessa é o papel motor do recurso às formas matemáticas enquanto ponto de partida, ponto de apoio, ou objectivo (vejam-se os cânones em espelho de Bach ou Mozart).
Proponho-vos uma imagem que pode desempenhar o papel de ponto de apoio para uma experimentação: um solenoide que permite, se definirmos um ponto de partida arbitrário (há-os mais interessantes que outros...), traçar caminhos divergentes / quase paralelos / convergentes em que as distâncias são relativas (para mim uma noção topológica essencial).



Sugiro que traçando uma linha virtual horizontal definamos o tempo (duração).
Na vertical, temos uma variável que poderíamos chamar (talvez encontremos melhor) coerência estrutural do som. Os valores mínimos desta variável definem ruídos aleatórios, os máximos, "frases" musicais.

Como os caminhos têm a forma de "fechados", é possível fazer um percurso só em "ida" (até ao ponto mais afastado do ponto de partida) ou em "ida e volta" com regresso ao ponto de partida, ou ainda com várias iterações.

O que "acontece" para cada curva (um indivíduo), qual o material utilizado, qual a estrutura sonora (instrumentos, sons, ruídos, vozes, textos).... é tudo o que resta por fazer!

Trabalho para experimentação, cujo sucesso é nada menos que incerto.

Se valer a pena, é porque sendo o sucesso incerto, o insucesso não só não tem custos, como permite aprender...

JRdS

6.09.2007

Especulações para uma experiência duma segunda-feira

Uma ideia central na minha maneira de perceber a música, a pintura, a fotografia, a poesia, é a de transformação.
O autor dá-se um espaço, seja ele simples (uma única dimensão, uma curva) ou mais rico, duas dimensões - o plano ou n dimensões, consoante os casos: primeira noção.
Esse espaço é adoptado consciente ou inconscientemente, de modo deliberado e claro ou apenas adivinhado, mais ou menos obscuro, mas é ele que determina as formas que nele podem ser criadas.
O autor dá-se, procura, recolhe ou produz um material: mais ou menos fixo, aberto, (in)determinado. Em que consiste o "material" em cada disciplina artística é uma questão em si, fundamental mas insuficientemente explorada. Segunda noção.
O autor tende a formular (explícita ou implicitamente), regras de transformação e de "assemblage" (combinação? associação? montagem?) do material no espaço que pretende percorrer, ocupar, preencher, habitar. Regras de transformação: terceira noção.
Note-se desde já que as infracções a essas regras, infracções que o autor se autoriza são tão interessantes (por vezes mais) que a obediência a elas. O que não as suprime nem as torna menos operantes.

Donde: o esquema de experimentação que sugiro assenta nos elementos acima enumerados, e no "jogo" com eles.
A partir de um certo espaço, de um certo material, ambos relativamente bem definidos (mas nunca de modo exacto), trata-se de imaginar regras de transformação que possam conduzir de uma forma de partida a uma forma de chegada.
Note-se que "forma" aqui não significa "estrutura de uma peça", mas sim: "um estado sonoro produzido por um grupo de fontes sonoras". Um estado sonoro pode ser entendido como uma estrutura composta por elementos sonoros numa certa relação entre eles.
Tais regras de transformação podem ser claras, mas a sua realização pode ser (melhor: não pode deixar de ser) "fuzzy", porque os participantes estarão submetidos a todas as contigências locais (caminho adoptado espontanemente pelos outros, contigências práticas, imprevisíveis, da execução).
E porque cada um conserva a sua parte de liberdade, o que produz um grau de incerteza que faz parte do processo.
Inspiração sugerida: as imagens de Escher, um experimentador das transformações das formas, fascinado nomeadamente pela divisão periódica do plano, o que, meditado em termos musicais por quem sabe, poderia muito bem ser... uma composição. Talvez melhor dito: uma famíla de composições possíveis explorando as transformações possíveis de um dado material num certo espaço.
Deste modo regressando ao ponto de partida, termino por hoje...
Vejam estas imagens

http://www.control.auc.dk/~obm/Hobby/Escher_obm/Escher_birds.htm

Ou para já esta, transformação do Dia em Noite ou da Noite em Dia, consoante a direcção do percurso :

Acho particularmente interessante observar, para além das transformações na dimensão horizontal, as que se produzem no eixo vertical: como um "campo" se torna "pássaro". A zona central, onde a ambivalência das formas nas duas dimensões atinge o máximo é certamente uma das mais interessantes: uma certa indiferenciação que contém em potencial os quatro estados diferenciados.

E outras imagens que encontrarão por exemplo em www.unesp.br/~jroberto/escher.htm
JRdS